8 de outubro de 2012

RG Costura Concreta

A cada final de exposição procuro registrar uma panorâmica do que aconteceu na Grampo. Este post é uma tentativa de transportar o conteúdo exposto entre os dias 1/08 a 1/09 ( veja aqui o vídeo convite, lindo, por Brutal Produções ).

Essa história começou quando Leopoldo Gurgel, ainda estudante de moda, esteve aqui, no final do ano passado, visitando a exposição "O Vazio Necessário". Ao se despedir, disse que apresentaria uma coleção de roupas baseada na obra de Le Corbusier para sua formatura na faculdade de moda. Alguns meses depois recebi um telefonema dele, e pra minha grata surpresa, me convidava a participar da banca examinadora de seu desfile. Expliquei que estava muito honrada com o convite, mas que tendo uma viagem marcada, não poderia. Mais um tempo se passou e ele retornou com um material de divulgação ( um catálogo lindo, em papel de jornal + vídeo incrível) de cair o queixo, que estava entregando pessoalmente para algumas pessoas. Talento e competência saltavam aos olhos, não tive dúvida de como seria bacana mostrar aquela coleção e contar uma história onde poderia relacionar as disciplinas de moda e arquitetura...Convite feito, convite aceito, teve início "Costura Concreta" que envolveu também outras pessoas com trabalhos fantásticos_vide a ficha técnica de ouro no final deste post.

Gostaria de lembrar que a Grampo, em sua face galeria, é um espaço aberto para a cidade, ainda que dentro do meu escritório de arquitetura. Para os trabalhos incríveis que vejo por aí e, principalmente, para as pessoas que quiserem chegar, aprender, celebrar. Enquanto isso a gente aprende e celebra também.



Foto: Manoela Beneti


Meu texto para a abertura da exposição:

"COSTURA CONCRETA

Hoje é mais um dia de celebrar a vida, a criatividade e a arte aqui neste espaço, parte integrante de meu escritório de arquitetura. É com muita alegria que apresento este novo exercício de curadoria, desta vez articulando as disciplinas de moda e arquitetura. Esta exposição, intitulada "Costura Concreta", traz a elogiada coleção de roupas de mesmo nome, livremente inspirada na obra do arquiteto Le Corbusier e assinada pelo jovem estilista Leopoldo Gurgel.
As roupas são resultado do trabalho de conclusão de curso de Design de Moda, realizado ao final de 2011, e a despeito de ser assinado por um estudante demonstra uma consistência louvável. Leopoldo estudou com paixão a obra do mestre franco-suíço e desvendou inúmeros livros em busca da personalidade, do caráter, do espírito criador daquele que foi um dos mais influentes nomes não só da arquitetura, mas da cultura Moderna.
A transposição da estética corbusiana para as roupas foi feita com elegância digna do arquiteto. E ao se apropriar desta estética, a trouxe renovada, mantendo sempre o domínio das técnicas de costura e moda para subordiná-la às suas criações. Com uma cartela de cores quase completamente cinza, além de patchworks, recortes, relevos em tricô, modelagens precisas e ajustadas, atingiu uma coleção de roupas usáveis e desejáveis  (objetivo de um curso superior, como o de moda, que prepara pessoas para o mercado), e ao mesmo tempo conceitual.
Quanto ao mestre Le Corbusier, nascido Charles-Edouard Jeannearet-Gris, em 1887, na cidade suíça de La Chaux-de-Fonds, sonhou um mundo e passou a vida transformando tudo à sua volta. E talvez seja este um dos motivos pelo qual será sempre referência, de uma maneira ou de outra, para todos nós. A complexidade e densidade de sua obra, além da atualidade de muitas de suas ideias, permitem e fazem com que seja sempre revisitado. E quem tiver a sorte de encontrá-lo sairá transformado do outro lado.
Para esta exposição, proponho uma promenade architecturale (um dos grandes conceitos deixados por Le Corbusier_o passeio arquitetônico) desde aqui até nosso terraço-jardim!  Esta promenade passeia pelos livros_ apenas muitos deles podem nos ajudar a compreender melhor um legado tão rico; pontua algumas maravilhas pensadas pelo arquiteto, como “Os 5 pontos para uma nova arquitetura”, O Modulor, aquele boneco-medida fantástico, o Espirit Noveau captado no clima do pós I Guerra; remete à tecnologia que permitiu colocar de pé sua arquitetura_ através da representação pelos corpos de prova em concreto expostos; por fim, amarro essa costura com um dos elementos mais simbólicos desta exposição: uma gravura dos anos 60 assinada pelo gênio. Esta obra foi gentil e generosamente cedida para esta exposição, pelo arquiteto Leandro Araújo. Ali, letra viva de Le Corbusier, para além de sua obra, nos faz compreender que ele realmente está entre nós.
Seja bem vindo!

Manoela Beneti,

01 de agosto de 2012"




Fotos: Flávio de Castro





"TRENCH COAT

- referência, de acordo com Leopoldo, foi a Capela de Notre-Dame-du-Haut. Ronchamp, França, 1951-55


Le Corbusier harmonizava as retas e curvas com maestria, em volumetrias sofisticadas, como na fabulosa Capela de Notre-Dame-du-Haut ( também conhecida como Catedral de Ronchamp), uma de suas obras-primas.
O Trench coat é uma peça-chave na coleção. Podemos identificar nele algumas derivações de elementos fundamentais na obra de Le Corbusier: a presença do concreto, aqui representada  tanto pela cor cinza como pelos detalhes em tricô, que remetem à textura; a harmonização das retas e da curva à frente da peça, como na capela de Notre-Dame-du-Haut; a origem da peça na História, já que o trench coat surgiu na I Guerra e era a roupa militar popular, feita em nylon para ser impermeável e utilizadas nas trincheiras. 
O clima do pós-guerra foi sentido por Le Corbusier em profundidade, e nele captou a presença de “Um novo espírito” de tempo ( L’espirit Nouveau). Baseado em suas percepções do novo momento e da nova cultura emergente, fundamentada nas máquinas e na racionalidade, postulou conceitos e parâmetros para uma nova produção arquitetônica. Ela deveria atender novos modos de vida, tanto no trabalho, quanto nas cidades e na vida privada das pessoas. Le Corbusier, ao formular essas ideias e colocá-las em prática, influenciou de forma irrevogável a história da Arquitetura Moderna." (MB)










"CALÇA

Pontuação histórica de Leopoldo no período da I Guerra Mundial

Com a enorme demanda de nylon para a fabricação de para quedas durante a guerra, as meias calças tornaram-se artigo de luxo. Para não perder a elegância, as mulheres  pintavam em suas pernas o risco vertical simulando a costura das meias. A costura nesta calça remete à isto.

O Pós Guerra marcou para Le Corbusier sua entrada no cenário das vanguardas artísticas , tanto como pensador atuante, como um dos maiores líderes da renovação da arquitetura européia. Naquele momento, captara a inauguração de um novo tempo, uma ruptura com o passado causada pela guerra. Baseado nessa percepção proclamou  ‘ Il exist um spirit noveau’. Cria e passa a editar a revista  L’espirit noveau. Projeto seu, do pintor francês  Ozenfant e do poeta belga Paul Berneé, de idéias puristas, se constituiu um dos principais meios de difusão dos debates das vanguardas artísticas européias. Para a nova produção arquitônica, propõe uma renovação através de um racionalismo que 'ordena sistemas e traça grandes planos, que deveriam eliminar qualquer problema.' ( Giulio Carlo Argan no livro Walter Gropius e a Bauhaus)" (MB)



Vestido Mullet _referência aos pilares de seção circular




Vestido Decote Costas_ Leopoldo teve como referência as aberturas/janelas de LC 



" VESTIDO MULLET E VESTIDO DECOTE COSTAS

Nesses dois vestidos podemos derivar 4 dos “5 pontos para uma nova arquitetura”, propostos por Le Corbusier no final de 1926.
O Vestido Mullet, ao sofrer o recorte lateral, e por ser longo, assemelha-se aos pilares de seções circulares, tantas vezes vistos na obra de Le Corbusier. Esses mesmos apoios longilíneos elevavam a construção em Pilotis, liberando-a do solo, permitindo a continuidade do mesmo.  A estrutura sobre esses pontos de apoio circulares permanece à vista e permite que aconteça a chamada Planta livre no interior das construções, ou seja, havia uma independência entre a estrutura e as vedações. Tal princípio permitia uma máxima flexibilidade na utilização dos espaços.
Já o vestido cujo decote nas costas remete às grandes aberturas, pode ser relacionado aos pontos denominados Fachada livre e Janelas em fita. Essas aberturas amplas, maximizadas, alongadas, eram consequência direta da planta livre, uma vez que a estrutura estava recuada para dentro do perímetro das construções. Dessa forma as janelas não sofriam interrupção pelos pilares, permitindo uma fruição visual e entrada de luz natural em potência máxima. A título de curiosidade, para complementar aqui o emblemático conjunto de pontos proposto por Le Corbusier para uma nova arquitetura, o de número 5 seria o Terraço-jardim:  propunha tornar as coberturas, até então executadas em forma de telhados inclinados, terraços habitáveis_ espaços de  enorme qualidade espacial e de grande impacto no bem estar cotidiano das pessoas." (MB)



Capa_ referência a planta do 7° pavto. do edifício residencial Port Molitor, Paris_ 1931-1934



"O CORPO

O Corpo é referência constante na métrica corbusiana. A força deste conceito se personifica na figura do Modulor, instrumento de medida, como o definia Le Corbusier. Um modelo de homem de 1,83m de altura, que com o braço levantado atingia 2,26m, consistia em um sistema, de subdivisões e partes, baseado na seção áurea, na sequência Fibonacci ( sequência de números naturais, iniciada por 0 e 1, onde cada termo subsequente corresponde à soma dos dois precedentes)  e nas medidas do corpo humano. A partir do Modulor, várias medidas presentes em seus projetos eram determinadas.   A descoberta da relação proporcional entre os números citados acima e as medidas do corpo humano-homem médio, causou grande espanto ao arquiteto, que pôde comprovar a existência de uma harmonia precisa, matemática, também nas dimensões das partes do corpo, já observada por ele em grandes obras de arquitetura e arte clássicas, desde a Grécia antiga ao renascimento. Sua definição de beleza passava, portanto, por essas medidas proporcionadas com precisão.

Na coleção de Leopoldo, o corpo é também o instrumento de medida e parâmetro constantes. Parece óbvio, por se tratar de roupa, mas a justeza de várias peças nos coloca diante de um extremo neste aspecto. As peças maiores, por sua vez, possuem como parâmetro definidor as plantas de alguns projetos do arquiteto." (MB)






" O CONCRETO

O concreto, não apenas como material, mas como tecnologia construtiva, permitiu a fundamentação das bases da nova arquitetura proposta por Le Corbusier. O domínio da técnica do concreto armado ocorreu durante sua temporada de trabalho no escritório de Auguste Perret, em Paris, para onde se mudou em 1916, ainda bem jovem, e está no cerne da criação dos “5 pontos para uma nova arquitetura”. Cada um dos pontos dependia da maneira como a estrutura se dava em relação à construção.

Na coleção de Leopoldo Gurgel, as cores de todas as roupas se desenvolvem dentro da escala de tons cinzas, tendo por referência o concreto, tão marcante na obra de Le Corbusier. Os crochês e patchworks fazem menção clara às texturas do material, com suas ranhuras devido às fôrmas e à brita em sua composição." (MB)









" MACACÃO

- Pontua na coleção a idéia de funcionalidade, de acordo com Leopoldo.

Para Le Corbusier, a funcionalidade era questão chave. Em sua obra, esta qualidade se concretizava de maneira extremamente sofisticada, uma vez que havia por parte dele uma constante preocupação em atingir o máximo esteticamente. Ou seja, as restrições e demandas do programa ( conjunto de áreas a serem projetadas, de finalidades diferentes) solicitado em determinada arquitetura, se personificavam de maneira objetiva, racional e eficiente, mas ainda assim atingiam status de objeto de arte. Le Corbu buscava isso através da racionalidade.

Em um dos mais importantes tratados de arquitetura moderna, seu livro “Vers une architecture”, de 1923, ele diz:
“Vocês usam pedra, madeira e concreto, e com esses materiais constroem casas e palácios; isso é construção. A inventividade está em ação. De repente, porém, vocês tocam meu coração, fazem-me bem; fico feliz e digo: “Isso é bonito”. Isso é Arquitetura. Existe a participação da arte."  " (MB)





















Corpos de prova em concreto








"MANTÔ EM TRICÔ BRANCO

-referência a planta do 7° pavto. do edifício residencial Port Molitor, Paris_ 1931-1934

Essa peça é o início da promenade , ou passeio, proposto pela curadoria. Marco zero da coleção de Leopoldo, criada um ano antes da coleção propriamente dita, após um primeiro contato do estilista com a obra do arquiteto.  No Croqui de Leopoldo, feito naquela ocasião, percebemos alguns dos conceitos de Le Corbusier em seu antológico “5 pontos para uma nova arquitetura”. As pernas longas e tricô suspensa, quase uma nuvem, remetem ao conceito de arquitetura elevada do solo, sobre Pilotis. Os cabelos da modelo, por sua vez, remetem à vegetação do Terraço-jardim, também entre as pontuações do arquiteto. Eram as coberturas habitáveis, jardins suspensos em detrimento dos telhados inclinados amplamente utilizados na época.

A Villa Savoye, residência projetada e construída em Poissy, no entorno de Paris entre 1928-29, é considerada a síntese dos “5 pontos para uma nova arquitetura” na obra de Le Corbuiser. São os outros, além de Pilotis e Terraço-jardim, a Planta livre, a Fachada livre e a Janela em fita. Esse postulado foi formalizado em 1926 pelo arquiteto e serviu de base para ruptura com a arquitetura praticada antes da I Guerra, considerada por ele ultrapassada, com um conjunto de práticas a serem superadas.

O conceito de Promenade Architecturale, ou passeio arquitetônico, é indissociável da arquitetura do mestre franco-suíço, como observa Carlos Alberto Maciel em seu texto de 2002, “Villa Savoye: arquitetura e manifesto” :  

“A valorização do percurso como uma estratégia conceitual, a ordenar tanto interna como externamente a Villa Savoye, é evidenciada desde a chegada, pontuando a experiência de fruição do objeto arquitetônico com surpresas constantes, seja a inflexão no percurso após o pequeno bosque, desvelando o volume da residência pousado sobre o tapete verde, seja na inversão da posição da entrada principal, contrária à chegada. O conceito se realiza através de um conjunto de propriedades materiais, trabalhado conscientemente com o objetivo de realizar a idéia de variação do percurso, obrigando a experiência do objeto arquitetônico em diferentes posições e pontos de vista e variando constantemente a relação entre o objeto e o fruidor. O próprio Le Corbusier revela a origem do conceito da Promenade:

"A arquitetura árabe nos dá um ensinamento precioso. Ela é apreciada no percurso a pé; é caminhando, se deslocando que se vê desenvolverem as ordenações da arquitetura. Trata-se de um princípio contrário à arquitetura barroca que é concebida sobre o papel, ao redor de um ponto teórico fixo. Eu prefiro o ensinamento da arquitetura árabe.“ " 









O estilista Leopoldo Gurgel . Talento!






Vídeo que fez parte do material de formatura do moço e esteve projetado no teto da exposição


Por fim, os livros que estiveram estrategicamente espalhados pela exposição, para serem lidos, folheados, ajudaram a ilustrar e explicar mais. São fundamentais para qualquer passeio pela obra de Le Corbusier! Segue a lista pra quem quiser se aprofundar:

- "A História Crítica da Arquitetura Moderna" - Keneth Frampton - Edit. Martins Fontes - 2000
- "A Viagem do Oriente"- Le Corbusier - CosacNaify - 2007
- "Depois do Cubismo" - Ozenfant e Jeanneret [Le Corbusier] - Edit. CosacNaify - 2005- "Le Corbusier: The Poetics of Machine and Metaphor" - Alexander Tzonis - Edit. Thames & Hudson - 2001
- "A Beleza sob Suspeita" - Gilberto Paim - Edit. Jorge Zahar - 2000
- "Le Corbusier" - Jean-Louis Cohen - Taschen - 2007
- "Le Corbusier: Uma Análise da Forma" - Geoffrey H. Baker - Edit. Martins Fontes – 1998
-"Le Corbusier" - Elizabeth Darling - Ed. CosacNaify - 2001
- "Le Corbusier, La Villa savoye" - Jacques Sbriglio - Edit. Birkhäuser / Fondation Le Corbusier- 2008
-"Le Corbusier's Villa Savoye" - Guillemet Morel-Journel - Edit. Itineraires - 2008
- "Mãos de Le Corbusier" - André Wogenscky - Edit. Martins Fontes - 2007
- "Walter Gropius e a Bauhaus" - Giulio Carlo Argan - Edit José Olympio - 2005
- "Unitè d'Habitation Marseilles, Le Corbusier" - David Jenkins - Phaidon - 1993


Ficha técnica:

Roupas_coleção "Costura Concreta": Leopoldo Gurgel
Croquis: Leopoldo Gurgel

Curadoria : Manoela Beneti
Cenografia, expografia e textos: Manoela Beneti 

Fotos da noite de abertura: Flávio de Castro
Fotos de dia: Pedro Estrada
Vídeo convite: Paulo Peixoto  .  Brutal Produções
Vídeo projetado no teto: Binóculo

Bar da noite de abertura: Rodrigo Mattar  .  Bartrend
Trilha sonora/ identidade musical: Rodrigo Bittencourt  .  Rádio Noir

Agradecimentos:

Ao arquiteto Leandro Araújo, pela gentileza e generosidade ao ceder para a exposição, sua litogravura assinada por Le Corbusier, dos anos 60. 

Outros muito importantes:

Consultare Engenharia (corpos de prova em concreto)
Iola Gurgel  (projetor)
Jackson Cardoso (montagem)
Rafaela Ianni  (auxílio precioso nos toques finais no dia da abertura)
Senai Modatec (manequins)

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